WHAT'S HE BUILDING IN THERE?  2013

A primeira coisa que me lembrei instantaneamente quando li o tema da revista - «Who lives next door?» - foi a música de um dos ídolos da minha adolescência - «What’s he building?» de Tom Waits - provavelmente induzido pelo ênfase da pergunta colocada, ou por uma espécie de associação similar de palavras.

A música de aura misteriosa e boa dose de negritude que diria quase magnética, bem ao género de Waits, leva-nos por um relato meio paranóide de um indivíduo que conspira medrosamente sobre a estranha e ameaçadora actividade do vizinho da casa ao lado. E lembrei-me deste exemplo, para falar na arquitetura enquanto lugar comum - um lugar de todos e de ninguém. Não se confunda este lugar comum com o «Common Ground» da passada Biennale de Veneza. Refiro-me mais ao lugar comum das imagens de arquitetura, tornadas muitas vezes, como as ferramenta quase exclusivas de acesso ao trabalho dos arquitetos. E neste caso em particular, o da fotografia de arquitetura que se tem produzido em Portugal, e o que ela tem documentado - ou melhor, como são retratados os nossos vizinhos!

A fotografia de arquitetura em Portugal tem sido alvo de grande atenção e tem felizmente catapultado inúmeros projetos para uma esfera de âmbito internacional. E isto em senso comum, poder-se-á dizer devido ao enorme trabalho levado a cabo pelos irmãos Guerra, que em pouco mais de uma década de existência documentaram para cima de meio milhar de obras de arquitetura. Isto naturalmente com o aditivo internet e a grande evolução que os motores de pesquisa Google trouxeram às pesquisas, sobre os quais arriscaria a dizer - colocaram a imagem dos dias de hoje num patamar de apogeu máximo de consumo.

A representação dos Guerra tem-se mantido bastante auto-explicativa, de caráter documental, tecnicamente hábil e pouco narrativa, ou seja, em que por norma os objetos de estudo surgem desvitalizados e bastante desligados do seu fundo-contexto. Enfim, já Ana Vaz Milheiro no seu texto «Mundo Perfeito» o referiu, e julgo que não será por demais reafirmar, a importante proximidade dos Guerra com a linha de referências germânica, desde Bernd e Hilla Becher, até a uma nova geração de artistas como Candida Höfer, Axel Hütte, Thomas Struth, Andreas Gursky e Thomas Ruff, que tem sido tão persuasiva que continua a influenciar outros jovens fotógrafos emergentes.

O solilóquio da representação.
Mas em vez de discorrer sobre as eloquências de Fernando e Sérgio Guerra, que em muito respeito, gostaria de dirigir o discurso para o tipo de vivências que habitualmente se registam neste tipo de fotografia. Sendo a disciplina de arquitetura um suporte para a definição do habitar, parece justo dizer-se que as obras produzidas pelos estúdios de arquitetura ainda que concluídas, mantêm-se incompletas, até serem tomadas pelos seus destinatários finais. E a fotografia pode muito bem cristalizar esse elo de ligação. No entanto, ao apostar-se num perfil de imagens em que é dada pouca importância à cenarização e ocupação dos espaços - dá-se uma espécie de solilóquio da representação. Ou seja, quando o objecto de desejo se prende em algo em que apenas aos arquitectos interessa, dificilmente outros observadores podem fazer parte desse jogo em que a imagem fotográfica se pode tornar num objeto de idealização. Afinal não se trata de representar uma escultura, mas sim de um objeto para habitar.

Entretenimento, ou o punctum prazeroso.
Todd Selby por exemplo, é um fotógrafo-jornalista que documenta um pouco de tudo - retratos, interiores, moda, etc. É também detentor de um projecto com o nome de - The Selby - que tem criado enorme potencial de interesse por todo o mundo, e em que o enquadramento das reportagens tem sido marcada pelo forte caráter dos ambientes das casas, que desde 2008, tem visitado. Obviamente o trabalho de Selby está mais centrado na ilustração do estilo de vida de quem habita, e menos no valor dos espaços das habitações per si, no qual a presença dos arquitetos e desenho parece já distante e longínqua. No entanto, essa forte componente de vida e caráter inscrito nas imagens construído por quem habita, não pode senão deixar de validar a força que cada espaço contêm, e naturalmente também toda a sua arquitetura.

Mas anterior a esta fase de um habitar amadurecido, está por exemplo o trabalho de Dean Kaufman, que habitualmente ilustra revistas como Surface, Wallpaper, Case de Habitare, New York Times Magazine, diversas Vogue, entre muitas outras. Para Kaufman, o grande fator diferenciador é não ter como cliente final nem o arquiteto, nem aquele que habita a casa, mas sim uma publicação e um público alvo bastante mais disperso. Ao contrário de Selby, Kaufman faz recurso por vezes de cenarização. O simular e ficcionar do habitar, são na verdade o reconhecimento essêncial da importância de se lhe fixar um punctum de prazer, para identificação própria do observador. Este tipo de entretenimento induzido, permite ao observador um termo de comparação e de proximidade, através da simulação dessa apropriação do espaço.

«who’s living next door?»
Em trabalhos como o dos irmãos Guerra, ou ainda outros mais radicais e formalistas - a inscrição do «outro» na imagem parece tornar-se intrusiva, ou até mesmo ameaçadora - a ponto de poder desequilibrar a própria imagem. E tal como na música de Waits - a ausência do «outro» pode despertar sensações de alerta, estranheza e de proibição ao observador. A ausência constante de narrativas nestas imagens, são na minha opinião espelho das idealizações que se produzem no seio da profissão do arquitecto. Este terceiro elemento, o «outro», destacado da obra e também do seu criador, parece muitas vezes não ter integrado o «quadro» dessa imagem. Na verdade, a manter-se este paradigma da imagem na arquitetura muitas vezes promovido pelos arquitectos - «who’s living next door?» - parece que será sempre algo tabu e a que pouco ou nada nos dirá respeito.

Artigo  Dédalo #10 - FAUP