Um café não é um espaço cultural?


‘O Bairro Alto, outrora conhecido como Vila Nova dos Andrades, é uma zona típica de Lisboa de ruas estreitas e empedradas adjacentes às zonas do Carmo e do Chiado, com casas seculares e pequeno comércio tradicional. Construído mais ou menos em plano octogonal em finais do século XVI, o Bairro Alto é um dos mais pitorescos da cidade.
Desde os anos 80 que é a zona mais conhecida da noite lisboeta, com inúmeros bares e restaurantes a par das casas de fado, local onde se situavam também quase todos os órgãos de imprensa portugueses. Nos últimos 20 anos adquiriu uma vida muito própria e característica, onde se cruzam diferentes gerações na procura de divertimento nocturno.
Parte dos prédios foram ou estão a ser recuperados, mantendo-se a traça original dos mesmos, o que veio permitir a instalação de novos e alternativos espaços comerciais, encontrando-se desde lojas multimarca e ateliers a lojas de tatuagens e body piercing.
Aos poucos verifica-se também que passou a ser procurado como um lugar para viver, estando a sua população a ser renovada e rejuvenescida.’ - 
Fonte Wikipédia


Para mim, alienígena de outra galáxia suspeita, que só conheci o bairro alto aos meus quase vinte anos, portanto muito tardios anos 90, o bairro sempre se me afigurou como um grande fenómeno urbano. A quantidade avulsa de gente que por lá deambulava em ambiente de festa e a força do lugar sempre me abismaram.

A esta história dos anos 80, nunca fui muito sensível, pois estranha-me que noutros sítios a que considero igualmente místicos, como alfama ou madragoa, não se tenham conseguido também transformar num produto cultural como o do bairro alto.

Há alguns dias, em plena luta laboral descobri que vivalma qualquer que esteja interessada em investir, possuir ou alterar um bar no bairro alto, tem que constituir e apresentar um projecto cultural no conjunto do seu pacote de licenciamento, ou alterações ao projecto de arquitectura. Esta informação ainda mesmo que muito disforme, chamou-me à atenção, e para o caso, imaginando que fosse verídica levou-me a discorrer um pouco sobre este assunto.

O que é que então podia justificar esta insanidade pseudo-cultural bairrista? Ou o que é que até agora ainda não tinha sido feito que justificasse o bairro como um local profundamente cultural e social?

Segundo sei nos tais idos anos 80, o bairro era cool por que lá se encontravam os choques culturais mais interessantes e delirantes da vida nocturna lisboeta, por exemplo, ter o Frágil com o som e a noite mais alternativa de lisboa versus as tasquinhas em que se cantavam um descomprometido fado vadio e à desgarrada, muitas vezes até, cantados pelas mães de alguns dos proprietários dos estabelecimentos.

Na sequência deste raciocínio, e lembrando-me da última visita ao bairro, em que desmoralizei pela quantidade de gente, a rebentar pelas costuras, que por lá encontrei, pergunto-me se esta medida cultural terá algum intuito ou afectação a esta bizarria sem dó e sem solução quer sanitária, quer viária, quer sei lá do quê mais?

A esta ideia do cultural só consigo associar a de uma ou outra galerias perdidas, vazias e sem interesse que encontrei nas ruelas de Veneza, sempre precedidas de algum Hotel, e que só assim permitiam-me circular desafogadamente sem embatucar com algum chinês de máquina digital em riste.

Tenho em especial consideração o bairro pela sua estranha peculiaridade: sítio onde se pode beber jecas até às tantas, onde se encontram os mais inesperados amigos, e pela valente dor de costas que fico sempre que lá vou, pelas horas infindáveis que fico de pé em amena cavaqueira.

Parece-me que aquilo que fez o bairro o que ele é hoje foram os cafés, os bares e os clubes nocturnos que lá insistiram em ficar e apostar nessa radicalidade de lugar escuro e remoto na noite de lisboa. Ao bairro não acho necessárias etiquetas ou selos deste seu formato cultural, este simplesmente é a expressão de um fluxo cultural e social que se intensificou nestas duas últimas décadas, mas que não se poderá propor aprisioná-lo, como que num frasco em solução de formol.

A essência destas vivências, a meu ver, têm mais a ver com os casos espontâneos de performatividade lúdica e cultural que a cidade recria, muitas vezes também pressionados por um conjunto de circunstâncias, quer sociais, quer até formais que permitem atingir assim esse outro formato cultural.

Interessa-me neste formato compreender que condições e mecanismos urbanos servem de suporte a estes eventos, mais do que esta história de nos entediarmos com estes pressionados projectos culturais.



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